Ainda me lembro da primeira vez em que me levou ao cinema, tinha eu três anos. Na altura, o Teatro de São João também funcionava como sala de cinema e foi lá que juntos acompanhámos as aventuras dum ratinho que se perdeu da família e que a todo o custo tentava reencontrá-la. Estávamos no tempo em que os filmes infantis ainda não eram dobrados em Português, e ele, com a paciência que tão bem o caracterizava, leu-me as legendas todas. Fê-lo sem reclamar, utilizando sinónimos mais fáceis para o meu entendimento. E daí nasceu uma tradição: sempre que saía um novo filme de animação, lá íamos nós.
Também recordo as idas ao circo na época do Natal, as farturas no dia de São Gonçalo e aquela gaiola pequenina e colorida com um grilo que ele me oferecia quando chegava o calor. No São João, comprava-me sempre um manjerico que dava flor em Agosto e que só morria quando vinha o frio.
Outro dos nossos rituais, era a ida à Feira do Livro. Lembro-me de voltar para casa carregada de estórias que ele depois lia em voz alta, até eu as saber de cor. E dos outros livros, aqueles que me trazia sem motivo aparente, e que faziam as minhas delícias.
Nunca foi um pai muito presente. Saía de casa antes de eu acordar e quando chegava, já eu estava a dormir. Era a minha mãe que, muitas vezes, durante a semana me levava ao trabalho dele, para que eu não o visse apenas na única folga semanal que ele se permitia tirar. Mas esse dia, por muito que o corpo só pedisse sono e descanso, ele dedicava-o a mim e à minha irmã e isso valia por uma semana de desencontros.
Não vou ser hipócrita e dizer que senti muito a falta do acompanhamento diário dele. Só sentimos a falta do que já tivemos e eu nunca fui habituada a que fosse de outra maneira. Aliás, quando ele resolvia tirar férias, ao fim de uma semana já eu estava ansiosa para que ele voltasse ao trabalho, de tal modo estranhava a sua figura sempre lá por casa, nas rotinas que eram só nossas - minhas, da minha mãe e da minha irmã. Não era por mal, simplesmente não estava acostumada. Para piorar, ele teimava em fazer sempre os deveres da escola comigo, e em passar-me mais exercícios quando eu terminava aqueles que a professora tinha mandado. Como todos sabem, isso constitui praticamente um atentado aos direitos de uma criança.
Costumo dizer que o meu pai não nasceu para ter filhas adolescentes e adultas. Assim que passei a saber andar sozinha na rua e deixei de gostar de circo, de ler os livros dos Irmãos Grimm e de ver os filmes da Disney, ele deve ter achado que a única coisa que eu precisava da parte dele era o suporte económico e afastou-se. Passou a ceder ao cansaço e a dormir durante a maior parte do seu dia de folga, e as nossas conversas a ser quase exclusivamente sobre a escola. Sempre exigiu muito no que toca aos estudos. Lembro-me de chegar a casa feliz da vida, com testes de Muito Bom e de mesmo assim ouvir um raspanete por ter falhado naquele pormenor que me poderia ter garantido um Excelente. Quando trazia um Excelente, em vez de um sorriso orgulhoso, recebia aquele discurso já familiar de que poderia ser sempre assim se eu me esforçasse, de que eu era uma preguiçosa e que não aproveitava as minhas capacidades. Na altura estes discursos levavam-me às lágrimas. Custava muito ser tão elogiada na escola e em casa não ver reconhecido o meu mérito.
Depois de na infância ter sido um pai cúmplice, que brincava connosco e nos livrava dos castigos da mãe, na adolescência descobri um pai imperfeito, com o qual tive uma convivência muitas vezes difícil. Mas às vezes Deus escreve certo por linhas tortas, e os obstáculos da vida acabaram por nos reaproximar. Quis o destino que fosse ele o primeiro a saber da minha doença e ao longo deste trajecto sinuoso ele tem-me surpreendido muito. Não descansa quando eu vou a uma consulta e não lhe ligo imediatamente a contar como correu, chora de alegria e abraça-me quando lhe dou boas notícias... E embora continue a chegar tarde a casa, agora todas as noites vai ao meu quarto perguntar-me como me sinto, e nos dias em que a febre e as dores levam a melhor, eu noto a inquietação na cara dele.
Continuo a achar que ele errou, mas acho que já o perdoei. Perdoei-o quando, na minha Serenata de caloira, me viu trajada pela primeira vez e me apertou nos braços, dizendo que tinha muito orgulho em mim. Perdoei-o quando vi o quanto ainda se preocupa com a minha mãe. Perdoei-o definitivamente quando pensei que ele poderia ter morrido.
Não, o meu pai não é o melhor do mundo. Tem muitos defeitos, falhou em muitas coisas e perdemos momentos juntos que nunca mais poderemos recuperar. Mas se hoje não vivo sem livros, a ele o devo; se adoro cinema, a culpa é dele. Se nunca duvidei das minhas capacidades, foi porque ele me fez acreditar que eu posso ser a melhor. Se nunca me faltou nada, se pude chegar onde cheguei, é ao esforço dele que tenho a agradecer.
E hoje, quando me dou conta de que não o vou ter ao meu lado para sempre, sinto um aperto no peito. E gostava que a vida nos tivesse feito diferentes aos dois, gostava de conseguir ser espontânea com ele ao ponto de o encher de beijos e de lhe dizer que o amo assim mesmo, com tudo o que de bom e de mau ele tem. Porque a verdade é mesmo essa: amo-o e não o trocava por nenhum outro pai no mundo.